Foto: Felipe Oliveira/EC Bahia
“Não me sinto seguro para viver ou manifestar, ou mesmo rebater comentários com esse tipo de preconceito, exatamente por medo de como pode ser recebido naquele ambiente. Com tudo isso, sim, é dos ambientes que eu frequento hoje o que eu mais busco agir “heteronormativamente”.
Parece até maluquice, loucura, doideira esse cara de boné para o lado, com a lupa no rosto, achando que vai abalar atraindo os olhares da mulherada, mas esse cara é gay. Inicio esse texto com a fala de Matheus Pires*, personagem ouvido por mim, que ganhou nome fictício. O ambiente hostil e homofóbico dentro dos estádios de futebol não é novidade, mas precisa ser repreendido. Você perde a identidade, que precisa ser mantida em prol da vida, o que lhe obriga a fazer a política da boa vizinhança. Sim, porque homofobia mata. E no Brasil mata muito.
Fingir ser quem não é por insegurança, retrata o quanto vivemos atrasados enquanto sociedade. O mundo pode até evoluir, mas o ser humano não. “Entendo como deve ser impossível para uma pessoa gay afeminada ou mesmo trans/travesti frequentar um ambiente como aquele. Esse ponto já me fez pensar algumas vezes. Deve ser hostil demais para essas pessoas”, continua Matheus.
E ele está certo!
Recentemente, o Dj e incluenciador Nega Lu foi hostilizado dentro da Fonte Nova pelo simples fato de usar a camisa da LGBTricolor, torcida que abraça e acolhe a comunidade LGBTQIAPN+ no estádio. Não tem como: sei o quanto é chato se sentir inseguro por causa da LGBTfobia que reina no ambiente futebolístico. “O espaço ainda não é para este público dentro de suas particularidades”, resumiu Matheus.
“Seu viado”, “Seu p** no **”. Os termos pejorativos.
As torcidas organizadas de Bahia e Vitória reforçam os cânticos LGBTfóbicos. As falas homofóbicas, dos dois lados, pesam, machuca, incomoda, mas a vontade de repreender trava, por medo.
Há 10 anos frequentando o Barradão, o presidente da torcida LGBT do Vitória – Orgulho Rubro Negro -, Roberto Junior, já ouviu que o local “não era lugar de viado”, o que o afastou de acompanhar o time do coração e do local mais privilegiado – que é a arquibancada – por mais de 4 anos. “Tive medo de participar de torcida, tive receio de muita coisa”, pontua Roberto.
Assim como Matheus*, Roberto endossa a necessidade de manter a passibilidade heterossexual. Ele explica que gays feminizados, dos quais têm amigos, “não se sentem seguros com a camisa da torcida LGBTQIAPN+ devido aos olhares de repreensão e intimidações”, mas mantém a esperança viva de que amanhã será um lindo dia: “Espero que um dia isso mude, tenho fé que vai mudar. Espero que tenhamos um avanço e que daqui pra frente, a gente possa ver as demais torcidas LGBTQIAPN+”, completou.
Nesse texto, os três – e me incluo – coadunam do mesmíssimo sentimento: a necessidade de manter o estereótipo heteronormativo para evitar qualquer desgaste num local onde se é feliz (claro, dependendo obviamente dos nossos times em campo).
Também conversei com Onã Rudá, presidente da torcida LGBTricolor. Apesar do episódio recente, Onã explica que “cada clube tem uma dinâmica diferente de lidar com a comunidade LGBTQIAPN+” e tomou como surpresa o fato ocorrido com Nega Lu. “Na Fonte Nova tenho tranquilidade total”. Levando em consideração o fato isolado ocorrido na última segunda-feira (18), o presidente também entende que os termos pejorativos e homofóbicos existentes incomodam, mas reforça que a repreensão fica em segundo plano. “Já gritaram “viadinho” umas vezes no começo da torcida, mas pra gente da LGBTricolor foi tudo muito diferente, porque temos uma rede de acolhimento no clube. Só que sempre tem aquele ‘uó’, mas a minha sensação é de melhora. O povo me abraça comemorando, abraça a galera da LGBTricolor, independentemente da área que a gente esteja”, frisa.
Atualmente, mesmo acontecendo alguns incidentes, existem situações que podem ser pontuadas como melhoras tanto na Arena Fonte Nova, quanto no Barradão. É o que diz Jamile Andrade, torcedora lésbica e frequentadora assídua das arquibancadas e do churrasco no estacionamento. “[o ambiente] Tem melhorado muito. Sinto que as pessoas estão respeitando os espaços das outras e o público LGBTQIAPN+ tem frequentado mais o estádio, se unindo mais e não tenho visto casos de intolerância. O único adendo são as músicas e os xingamentos a torcida adversária que são chamados de “Bagay”, que ainda acontece no ambiente e acredito que incomode e fomente a intolerância”, comentou Jamile, que emite uma opinião vista de outro ângulo e que nos dá a possibilidade de acreditar que temos, sim, uma luz no fim do túnel.
[Aproveitando o gancho do comentário de Jamile, na Fonte Nova – e tenho lugar de fala, tá? – o fim da música “Xalaiá Laiá”, cantada pela Bamor, é “meu p** no ** do Leão”, em referência ao Vitória. Tem também o termo “TUIgay”, direcionado a torcida organizada do Vitória. O ranço. Mas, retomando…]
Dos agentes ouvidos, uma certeza: a busca por espaço e melhor acolhimento teve um início e não vai parar por aí. Sejamos resistência dentro e fora do estádio, diante da sociedade. Seja onde for. Ações precisam ser pautadas, clubes e entidades precisam abraçar ainda mais a causa e mostrar que ser LGBTQIAPN+ é tão normal quanto a heterossexualidade, que é respeitada e que precisa respeitar também. Não gosto e nem utilizo o termo ‘aceitação’, por entender que ninguém tem obrigação de aceitar nada.
Quem pediu?
Atualmente vivemos o retrato de uma sociedade conservadora, onde no meio futebolístico as pessoas enxergam o futebol ainda lá na década de 50, e aí é cartão amarelo. O único impedimento possível é o da linha traçada pelo VAR. A comunidade LGBTQIAPN+ deve ter liberdade para demonstrar que, independente da sexualidade, o futebol é um mundo de todos. existe paixão, emoção, fervor. Existe um torcedor. O apito inicial foi dado e vamos continuar a marcar esse golaço de sete cores.
Finalizo com um trecho do texto ‘Aqueles Dois’, de Caio Fernando Abreu, em ‘Morangos Mofados’ (1995). Inclusive, indico a leitura.
“Só que homossexualidade não existe, nunca existiu. Existe sexualidade – voltada para um objeto qualquer de desejo. Que pode ou não ter genitália igual, e isso é detalhe. Mas não determina maior ou menor grau de moral ou integridade”.
Neison Cerqueira é jornalista e apaixonado por futebol e política.